NOSSO QUILOMBO ESTÁ EM FESTA!
SARAVÁ TODOS OS PRETOS (AS) VELHOS (AS)!
Nesse mês de maio comemoramos a fundação e a inauguração de nossa Tenda Espírita.
Completamos exatos 34 anos de fundação e 33 anos de inauguração, sempre embuidos de sentimento fraterno, baseados na fé e seguindo o lema da Umbanda que é: a manifestação do espírito para prática da caridade.
Deixamos de presente para todos os nossos seguidores um texto escrito por Nerita Oeiras que nasceu junto com a fundação da casa. Um texto que mostra o nosso Quilombo como nosso espaço de pertencimento. Esperamos que vocês gostem, mesmo escrito em espanhol.
Nasci em um quilombo, por Nerita Oeiras
Nasci em um quilombo. Não no meio de um quilombo no sentido de caos, como às vezes escuto dizer aos argentinos. Umquilombo mesmo, palenque, cimarrón,cumber, maroon society ou como quer que seja o nome que decidamos dar a esse lugar de refugio, proteção e resistência dos povos afrodescendentes em toda a América colonizada. Mas eu não sabia que havia nascido em um quilombo.Nossa casa de caridade se chama Tenda Espírita Pai Mané de Aruanda, e é um terreiro de Umbanda. A Umbanda é uma religião afro-brasileira que tem uma só regra: buscar manifestar a espiritualidade na prática da caridade. Eu não tinha plena consciência do significado de uma frase tão simples. Para mim, o terreiro era mi segundo lar,o ponto de encontro da minha família (que não era uma família apenas consanguínea), um lugar de oração, de festas, de cura espiritual e também física, de descanso e, principalmente, um estilo de vida: ajudar aos mais necessitados. Quando eu dizia aos meus amigos que vinha de um lugar cujo propósito fundamental era ajudar aos demais, eles quase sempre imaginavam uma fundação ou pensavam que eu vinha de uma família de banqueiros, petroleiros ou algo do tipo. Porque, no imaginário de muita gente, é o rico quem pode ajudara os demais. Os países ricos ajudam a África, a Igreja Católica ajuda aos pobres de todo o mundo através de sua fundação Charitas.No nosso caso, nunca tivemos dinheiro. Ajudar aos demais nada tinha a ver com o fato de possuir riquezas.
Éramos uma família mais para pobre,de um bairro “distante” do Rio de Janeiro. Vivíamos 7 pessoas num apartamento de 35m2Ç meus dois avós e seus 3 filhos adultos, meu tio-avô e eu. Meu avô trabalhava no porto, numa empresa de exportação de café, e minha avó fazia bolos e salgados para vender. Eu nunca pensei que nós éramos “pobres”. Eu conhecia pessoas muito mais “pobres” que nós. O bairro onde está localizado o terreiro às vezes não tinha água ou luz, e somente no ano 2012 que a Prefeitura asfaltou as ruas de terra. Eu tinha muito amigos nesse bairro, que vinham das muitas famílias que meus avós ajudavam todos os meses com uma cesta básica. Ir ao supermercado com meus avós era curioso, porque comprávamos todos os meses 10 ou20 litros de óleo, 20 quilos de açúcar (lembro de uns pacotes grandes de papeld e açúcar União, com letras verdes), quilos de arroz, etc. Além disso, todos os anos o terreiro ajudava a mais ou menos 200 crianças com roupas, materiais escolares e brinquedos novos. A ajuda não era reciclada, não é que oferecíamos as coisas velhas que já não usávamos.
Meus avós são os “lideres” do terreiro, e dedicaram mais da metade de suas vida a ajudar aos demais. É possível que com o dinheiro que eles até hoje “gastam” em ajudar a famílias da comunidade local pudessem ter uma casa mais confortável, matricular seus filhos e netos em melhores escolas, ou simplesmente trabalhar menos. Mas lá no terreiro a gente aprende que se você já tem o suficiente, você se sente melhor se compartilha o que você já não precisa com os demais. E se você tem um conhecimento, você compartilha com os demais. Assim, toda a comunidade cresce.Se uma pessoa da comunidade vira dentista, advogado, o que seja, coloca seus conhecimentos ao serviço da coletividade. Tenho muito amigos que nasceram muito pobres, mas que graças à vida em comunidade puderam estudar, ir à Universidade,aprender idiomas, etc. Não graças ao terreiro, ao graças à minha família, mas graças à vida em comunidade.
Um terreiro é uma forma de quilombo,assim como os afoxés, as agremiações de samba, as gafieiras, etc. Estas são unidades únicas de afirmação de culturas de matrizes africanas no Brasil. Para quem estão do lado de fora, no começo pode ser um pouco difícil entender o que queremos dizer quando constantemente nos referimos a “matrizes africanas”,porque a simples vista nos parece muito evidente que muitos de nós que crescemos nesses terreiros não somos negro nem nunca estivemos na África. Mas ao reconhecer como nossa a matriz africana, afirmamos que já não estamos regidos pelas matrizes eurocêntricas coloniais, que pertencemos a uma luta pela existência, que apesar da cor da nossa pele conhecemos nossa história e nossa ancestralidade e que nossa cosmovisão está mais alinhada com a cosmovisão das minorias historicamente reprimidas, oprimidas e subalternizadas, que são os nossos verdadeiros espelhos, nossos avós ou bisavós, nossa própria historia familiar, o lugar de onde viemos.
Poderia parecer que um terreiro, por estar dotado de sentido comunitário, é como uma Igreja, mas não é. Como disse Abdias do Nascimento em seu artigo “Quilombismo, an afro-brazilian political alternative” (Quilombismo, uma alternativa politica afro-brasileira), esteespaços são “[…] tactics and strategies of survival, resistance and progress ofAfrican communities in contemporary Brazil” (Nascimento 1980, 153), ou seja,táticas e estratégias de sobrevivência, resistência e progresso das comunidades africanas no Brasil contemporâneo. Minha bisavó, que também se chamava Nerita,poderia ser considerada negra. Através do terreiro, e muito além da atual corda minha pele, a nossa cultura familiar, que é negra e de matrizes africanas,pode sobreviver. Esta que é a cultura da minha família e de outra centra de milhares de famílias em todo o Brasil, estava destinada a morrer. No Rio deJaneiro dos anos 70, aproximadamente 50% da população era pobre e morava em favelas. Destas pessoas, 90 % eram negros. Concordo com o pensamento de Abdias do Nascimento, que afirma que os negros se viam obrigados a adotar os costumes da cultura dominante para garantir a sua sobrevivência. Durante séculos viveram no limite do que se pode considerar humano, sempre tendo que ceder a sua zona do ser com a finalidade única de sobreviver, de comer. Mas o negros encontraram primeiramente os quilombos, e logo os terreiros, sambas e gafieiras, unidades de resistência em donde podiam ao mesmo tempo ser e sobreviver. Sobrevivemos graças ao apoio de nossa comunidade. Desde estes espaços, garantimos a nossa existência como seres humanos. Estes são espaços onde o negro pode recuperar a sua liberdade e a sua dignidade, escapando de um encarceramento social, econômico, politico,religioso, etc. Ao construir sus vidas em torno dos quilombos, os negros se recusaram a submeter-se à exploração de um sistema que até mesmo nos dias de hoje utiliza dinâmicas coloniais escravistas e violentas. Os negros não ocupam espaços de articulação do poder e continuam sendo excluídos, vivendo às margens desse sistema. No entanto, no quilombos persiste a sua identidade, um lugar único que podem ocupar com liberdade.
Os terreiros de Umbanda e outros quilombos são espaços que possuem dois significados, um “casa adentro” e outro“casa afora”. “Casa adentro”, o terreiro é um espaço que reforça os laços de solidariedade entre os membros de sua comunidade, promovendo entre eles valores e mantendo uma sabedoria ancestral que vai muito além da religiosidade. Um terreiro é um espaço onde se articulam politicas comunitárias, onde se difundem conhecimentos sobre medicina ancestral, onde se transmitem cantos e toques de tambor. Lá, oralmente, se conta a outra historia do Brasil, aquela que não está nos livros e que não corrobora com as dinâmicas do poder, mas que é essencial para garantir a sobrevivência das comunidades negras e pobres, historicamente invisibilizadas pela historia e cultura “oficiais” . Sua função principal é gerar a memória coletiva de uma comunidades que insiste em não desaparecer,lutando contra o esquecimento porque entendeu que o esquecimento fragiliza a mesma comunidades e que somente a partir da memória é que podemos combater a desagregação.
“Casa afora”, as instituições do poder querem que estes espaços se convertam em pontos turísticos, quem desacreditar a religião chamando-a de “magia”, querem exigir que espaços como estes paguem impostos, como se sua finalidade fosse gerar lucros. As instituições politicas buscam fazer da ancestralidade um folclores, convertê-la em espetáculo, numa tentativa por silenciar as vozes que aí se articulam, de dissuadir a resistência secular que estes espaços representam. “Casa afora” os terreiro, gafieiras e agremiações de samba sorriem e cantam, mas não deixam de lado a luta quilombola silenciosa que os caracteriza “casa adentro”. A luta quilombola é “[…] a construção de conhecimentos desde a ação e para a ação”(Arboleda, 2014), um luta pela memória do saber negro que persiste através dos séculos, uma memória que será útil para os negros e todos os povos oprimidos em suas reivindicações por ocupar, num futuro, poder ocupar espaços de decisão.
Tendo crescido num terreiro, nunca tinha percebido que aí se cria uma consciência única sobre o ser e sobre a vida em comunidade que não é facilmente compartida com aqueles que não participam da comunidade, e que não existe para ser um espetáculo em eventos sociais. É uma dimensão histórica intangível e íntima. Como menciona Santiago Arboleda, estes não são espaços unicamente religiosos, ou unicamente políticos, ou unicamente comunitários, porque nós que aí crescemos não vemos a espiritualidade, as políticas sociais ou a comunidade como entidades desassociadas, separadas. Elas caminham lado a lado, e não podem ser instrumentalizadas a favor das ciências sociais ou das instituições, porque fazem parte de nossa forma de posicionarmos ante ao mundo, que é uma forma única para nós que nascemos negros, pobres ou ambos. Esta visão é o que nos permite existir, é a ferramenta principal que temos para seguir sendo seres humanos, enquanto um sistema de matriz eurocêntrica continua a negar-nos a possibilidade de existir. Sem o terreiro,minha família não seria a mesma, eu não seria a mesma. Este é o espaço que nos mantém unidos, que mantém viva a história de onde viemos, que me permitiu conhecer o outro Rio de Janeiro, que me permitiu entender o que quer dizer ser pobre ou rico, o que significa lutar pelo bem-estar coletivo. Foi a TendaEspírita Pai Mané de Aruanda que nos deu forças para superar adversidades, que não foram poucas. É um dos poucos lugares no mundo onde eu me sinto realmente em casa, onde não existem máscaras ou outras peles que vestir. Aí, vivo baixo a guia e proteção de todos meus orixás, que se manifestam neste plano terrenal através de meus tios, primos ou irmãos, carnais ou espirituais. Aí sou, desde aí falo. O quilombo é meu lugar.
Bibliografia
Arboleda,Santiago. 2014. Seminário EnfoquesPlurales Sobre el Mundo Andino. 16 de dezembro. Universidad Andina SimónBolívar, sede Quito, Equador.
Nascimento,Abdias. 1980. “Quilombismo: an afro-brazilian politcal alternative”. En Journal of Black Studies,vol. 11, no.2., pp 141-178. Thousand Oaks: Sage Publications, Inc.
Lista de referencias
Arboleda, Santiago. 2014. Asignatura Enfoques Plurales Sobre el Mundo Andino. 16 de diciembre. Universidad Andina Simón Bolívar.
Nascimento, Abdias. 1980. “Quilombismo: an afro-brazilian politcal alternative”. En Journal of Black Studies, vol. 11, no.2., pp 141-178. Thousand Oaks: Sage Publications, Inc.