Esse texto é de um dos irmãos de santo do nosso pai, Marcos Andrade. Esse professor tem um memória incrível e cita fatos sobre Ivo de Carvalho que até a família desconhece. Obrigada Marcos por nos trazer essas lembranças deliciosas. O texto de Marcos segue abaixo.
Nascido em família materna de umbandistas, fascinado com aquilo tudo, aconteceu de passar uns aninhos sem nem pensar muito naquelas coisas. Sem que eu consiga identificar o dia D, o marco zero da rememoração, eu e meu mano Jorge começamos a recuperar aquela nossa herança familiar – Batucando no braço do sofá, cantando pontos das antigas, escutando quase que o tempo todo o LP da Gira da Amizade… Lembramos, sei lá, lembramos que éramos da Umbanda e gostamos de nos lembrar. Eu, quatorze anos de idade; mano Jorge, aí pelos treze. Quando, por estrita casualidade, oportuníssima casualidade, passamos em frente à Tenda Espírita Estrela do Oriente, veio bem a calhar; o timing perfeito.
– Oba! Tem um centro de Umbanda aqui.
Dona Ondina:
– Entrem, fiquem à vontade.
Entramos, amamos, ficamos.
A primeira gira de Exu que assistimos deixou uns registros indeléveis aqui na lembrança do coroa. Antes de chamarem os Compadres e as Comadres, fizeram uma cantoria geral para Orixás. Eu sabia um monte daqueles pontos; os que eu não sabia, adorei! Cantaram para Nanã Buruquê aquele ponto que tinha no LP da Gira da Amizade. Naquela época eu já sabia que sou filho de Nanã, mas não sabia quem era meu pai de cabeça. Na real? Eu nem sabia que tinha que ter pai de cabeça… Mas cantaram o ponto do Gira da Amizade. Meu irmão, de boca escancarada, acompanhava em plenos alvéolos:
“’Caruba eu, ‘Caruba’ eu, Nanã, ‘Caruba’ eu, Nanã, ôh Nanã Buruquê!”
Pensei mesmo em avisar ao Jorge que não era “Caruba”, era “Saluba”, mas eu próprio não estava completamente certo disso. “E se o Jorge estiver correto?”, elucubrei. “E se o certo for ‘Caruba’, e eu e todas as outras pessoas do salão estivermos cantando errado? A ver. Depois eu pesquiso e confiro.”
É “Saluba” mesmo.
Chamaram o Povo de Rua. O ogã da casa, um magrinho meio fanho chamado Romualdo, filho biológico da mãe de santo, batia pacaceta, mermão! Cantava igual a pato, mas aquela voz anasalada tinha um ziriguidum esquisito que fazia arrepiar até os pelinhos de bunda. Ele abria a chamada de Exu com:
“Ina Ina Mojubá, êh, é Mojubá! Ina Ina Mojubá, êh, é Mojubá!”
O ponto é meio sem graça, mas o Romualdo fazia ficar apoteótico… E aquele centro era estranho, porque, vê se pode, as pessoas… cantavam. Centro de Umbanda onde as pessoas cantam?! Como assim?! Que ineditismo é esse?! Ninguém fica lá fazendo carinha de paisagem e olhando para o ontem?! Que estranho! Era casa de Umbanda de um modelo dito bem tradicional; irmãzinhas de guarda-pó, irmãozinhos de jaleco, com emblema do centro bordado no bolso, mas todo mundo ali era tarado para cantar macumba. Médiuns cantavam com entusiasmo, a assistência cantava com entusiasmo, até as entidades cantavam com entusiasmo… Quero dizer: Aquela “umbandinha tradicional” ia buscar gente a dois quarteirões de distância e apanhava os Guias duas estações depois de Aruanda. O povo descia na pressão!
Exus em terra. Meu irmão me diz:
– Marcos, olha o braço daquele cara.
Olhei para o braço daquele cara. Que braço que tinha aquele cara!
Naquele tempo eu ainda não puxava ferro, mas sempre gostei dessa coisa dos músculos enchendo a camisa Hering. Eu ia aos cine-poeirinhas do bairro para assistir filme de Maciste e o meu Tarzan preferido era o Gordon Scott.
Aquele cara chamava-se Ivo de Carvalho.
Estava incorporado de Exu Sete Estradas.
Antes de conhecer o Ivo, conheci o braço daquele cara.
Pessoa singular. Durante toda a sua vida, trabalhou em um único emprego; uma empresa que atuava no ramo da exportação de café. Entrou menino, como office-boy, saiu aposentado, como diretor. Supõe-se, portanto, que fosse um homem bastante confiável… Mas, mesmo solidamente empregado, também corria atrás. Esposa e três filhos para dar de comer, dar de morar, dar de vestir, dar de estudar… Exportação de café, só isso, não vigorava para enfrentar o desafio. Ivo enchia caixa de isopor com sei lá quais coisas para vender na praia, aos fins de semana; foi ator em peça de teatro; rasgou listas telefônicas em programas de auditório (nunca me ensinou o macete); pousou nu em Escola de Belas Artes… Se virava, trabalhava, exportava café. Aposentou, descansou. Que nada! Abriu pet shop, foi ser taxista… Trabalhava. Ralador.
Ele e a esposa, a encantadora Helenice, foram apresentados ao espiritismo em centro kardequiano (essa é a hora em que umbandista que não é preconceituoso de jeito nenhum, imagina, para de ler). Lá na mesa, lhe disseram:
– Senta aí, meu bom. O papo é sério: Tu é médium, parceiro, tu é médium; e essas entidades que estão aí contigo, xiiiiii… Tudo de Umbanda, meu rei. Recomendo correr pra lá.
Correu pra lá.
Para que você compreenda o que se segue, é preciso informar que o Ivo, exportador de café, confiável, sempre foi um sujeito bastante cordial, mas tinha umas coisas de “cabra macho”, afinal, ele fora boxer, já lutara no Tele Catch Montila e detinha o título de Mister Guanabara, competindo pelo Ginásio Força e Saúde. Entendeu o porquê do “braço daquele cara”? Entendeu por que aquele cara pousava nu na Escola de Belas Artes? Físico do tipo que me levaria aos cine-poeirinhas do meu bairro… e boxer porradeiro… Cabra macho.
Então:
Na Era Pleistocena, quando Ivo ainda era médium cheirando a leite, em fase de desenvolvimento na Umbanda, estava ele atuado por seu Caboclo, que ele ainda nem sabia quem era. Parado, quieto, olhos fechados, o braço para trás típico dos Caboclos… Na consciência, pensou o mister Guanabara porradeiro:
“O que é que eu tô fazendo aqui? O que é que tô fazendo aqui? Que papel de bobo é esse?”
Ivo me contando:
– Marcos, tirei o braço de trás. Eu estava parado, pa-ra-do, eu tropecei. Tropecei em quê? Não sei. Eu estava parado, mas tropecei. Tinha uma coluna de concreto no meio do centro. Fui mandado de cabeça pra cima daquela coluna. Parado, tropecei, de cabeça na coluna. Cristalino como água de filtro de barro: ‘Tá bom, tá bom, já entendi, não precisa se aborrecer, pega leve’. Voltei o braço pra trás. Cabeça não deu nem galo.”
Essa foi a avant première do Ivo com o excelente Caboclo Flecha Ligeira, o Bacuro que haveria de acompanha-lo por todos os muitos anos que se seguiram. Todo mundo tem direito a um momentinho temperamental, não é verdade? Seo Flecha Ligeira, confie em mim, era um lorde, um Caboclo elegantíssimo, acredite. Sério que só quem viu, mas adorável. Salve ele!
Quem conheceu o Ivo de Carvalho nesse circuito de festivais de músicas de Umbanda, certamente lembra da simpatia explosiva, do baixinho careca e barrigudinho que, um pouco na vibe do Romualdo, também cantava pelo nariz maior do que a cara e contava as piadas que faziam a gente se acabar de rir.
Parênteses:
Ivo amava música e projetou sua musicalidade toda na intenção de composições que eram… lindas! Simples… e lindas! Tenho o hábito de dizer que, na Umbanda, Ivo era o que correspondia ao Dorival Caymmi, porque o Ivo era compositor de modelo único. Caymmi não influenciou ninguém na MPB, por que só ele sabia ser ele. Ivo era desse tipo. O que compunha, só ele sabia compor. E cada ponto bão, mermão! Dá vontade de citar as muitas músicas ótimas que o Ivo fez para o Povo de Umbanda. Fico devendo, mas, para mencionar só uma, vai a que ficou mais famosa, imortalizada no vozeirão do Tião Casemiro:
Ele bradou na aldeia
Bradou na cachoeira
Em noite de luar
No alto da pedreira vai fazer justiça p’ra nos ajudar
Ele bradou na aldeia, kaô, kaô
E aqui vai bradar, kaô, kaô
Ele é Xangô da pedreira, ele nasceu na cachoeira
Lá no Juremá
Por causa desse ponto que você conhece, gente às penca pensa que o Ivo era filho de Xangô. Néra, não. Ivo era filho de Ogum… filho de Ogum Malei.
Fecha parênteses.
Quem conheceu o Ivo simpaticão, piadista, comunicativo, não imagina que, naqueles velhos tempos de Tenda Espírita Estrela do Oriente, ele era mais sério, mais calado, mais comedido. Falava pouco, olhava muito. Quando chegava no endereço, trazia consigo a impressão de que “seus problemas acabaram”. Qualquer tsunami, seo Ivo resolve. Resolvia mesmo. Sempre gentil, sempre educado, mas mais sisudo e… um tantinho intimidante. Mas, poxa, um cara com aquele braço! Era para respeitar.
Alguns Exus e algumas Pombagiras lá de casa tinham o costume de dar suas consultas sentados no chão. Passo pelo salão e, repentinamente, surge esticado diante dos meus olhos o braço daquele cara. Seo Sete Estradas, com a sutileza de um brontossauro, me diz:
– Acende pra mim.
Assim mesmo, direto e reto. O charuto tinha apagado. Êh pai, como eu vou contar isso? Você já almoçou? Tomara que sim. Não havia milímetro quadrado naquele charuto que não estivesse todo babado. Salivas profusas no charuto apagado de seo Sete Estradas… “Como é que eu vou segurar isso?”, pensei com a alma apavorada… Achei lá um pedacinho que dava para segurar com pontinhas de unhas… Mas não consegui acender sem que levasse o pito à boca. O Exu daquele cara… o braço daquele cara… Acendi, né? Não tinha coluna de concreto no meio do centro, mas… melhor não contrariar.
Orgulhosamente informo que na inauguração da Tenda Espírita Pai Mané de Aruanda, em Sepetiba, fomos eu e meu mano Jorge que seguramos a gira no atabaque. Sessão foi dez! O ano? 1982, o mesmo ano em que eu compus minha música do Exu Caveira, também imortalizada no acima citado vozeirão do Tião Casemiro. É, gente, o garotão que achava que era “Saluba”, mas ficou em dúvida com “Caruba”, está ingressado na ala geriátrica dos umbandistas decanos.
Foi através de Pai Mané de Aruanda, entidade do Ivo, que eu finalmente soube que, sim, tem que ter um pai de cabeça, e meu pai de cabeça é Oxóssi. É ou não é para amar esse Velho? É ou não é para amar a memória daquele cara?
Nelson Rodrigues dizia que “a unanimidade é burra.” Talvez faça sentido. Conheço gente parráio que, com razão, não gosta de mim; e conheço gente parráio que, sem razão, eu não gosto. Nesse meio de Umbanda, principalmente no meio de festivais, ninguém é uma unanimidade. Faz sentido… Mas “exceção” não é apenas uma palavra. Anos de Ivo de Carvalho, mais de oitenta anos de Ivo de Carvalho, mais de cinquenta anos de Ivo de Carvalho na Umbanda, e eu nunca, nunca, nunquinha, conheci ninguém, ninguezinho, que não gostasse daquele cara. Redonda e matematicamente todas as pessoas que conheceram o Ivo amaram o Ivo. O disgramado não tinha defeito, carái! Se tinha… devia ser deixar toalha molhada em cima da cama, ou apertar pasta de dente no meio do tubo. Maaaiiissss de cinquenta anos casado com a Helenice, e eles dois nunca brigaram… NUNCA brigaram. Um casal decenário que nunca brigou?! Isso não deve ser de Deus, não. Se, apenas se, tão somente se, brigaram, foi por causa de toalha molhada, ou tubo de pasta de dente. Helenice não gostava que ele fosse fumante. Ivo parou de fumar. Que tédio, meu Deus! Que tedio de amor é esse?! Eu nunca conheci ninguém que tivesse um isso para criticar Pai Ivo de Carvalho, o marido da Helenice, o pai do Beto, da Sylvia e da Ana; o filho de Ogum Malei, médium de Pai Mané, de Caboclo Flecha Ligeira e do hiper salivante Exu Sete Estradas.
A Tenda Espírita Pai Mané de Aruanda persiste firme e forte lá em Sepetiba. Estrada Velha do Piaí, 580. Chegue lá no bairro e pergunte pelo “centro do muro azul”. Vizinhança toda vai te apontar onde é. Casa das boas, valentemente conduzida pela patroa, Mãe Helenice de Carvalho, uma baixinha de metro e meio, um pouco parecida com o Barney, dos Flintstones, que, na potência de Caboclo Pena Branca, leva o trabalho adiante e se mantém em sua tese mais preciosa: “É preciso amar o Amor!” Hora dessas, volto lá. Pedir benção a Helenice, cantar para Pena Branca, cantar para Flecha Ligeira e filar café na cantina.
Ivo se foi há alguns poucos anos. Na retinha final, ele costumava dizer que “se eu levantar os braços pra me espreguiçar, Deus me puxa.” Puxou. Voltou para a casa lá de riba. Deixou uma saudade arretada! Eu chamava aquele ex-mister Guanabara de mister Umbanda. Como lhe coube esse título!
Tantos anos de Pai Ivo por perto, e eu nunca o vi desanimado, desmotivado, cansado. A alegria pela Umbanda lhe era incessante; seu entusiasmo por sua fé, infinito… Olha… aquele ali realmente… bradou na aldeia. Por paixão à sua fé, por evidente amor à sua Umbanda, eu nunca, nunca, nunca vi faltar força…
… No braço daquele cara.
Marcos Andrade